quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Me considero arte

A arte se derrete
pingando por meus dedos
e tingindo de sangue
os quadros do meu quarto.

domingo, 6 de setembro de 2015

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve. 

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração. 

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar. 

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar
“[o sentido da minha vida] é inventado a cada momento, mas é claro que eu necessito da poesia, eu necessito da arte, eu necessito de estar discutindo essas coisas, de estar pensando nessas coisas que dão transcendência à vida. Eu não tenho dúvida alguma de que a arte é necessária porque a vida não é suficiente, porque senão qual era a necessidade de inventar a arte? A necessidade é essa: as pessoas necessitam dela, por mais que aconteça coisa no mundo, a arte sobrevive, como uma forma de acordo com o momento, com a época, ela é uma coisa necessária, como a ciência é necessária, como a filosofia é necessária, como a religião é necessária, como a política é necessária. “

Ferreira Gullar

terça-feira, 11 de agosto de 2015


Tem dias

Tem dias que eu sou assim
Querendo, mas parado
Falando, mas calado
Falando só pra mim
Num egoísmo total
Apesar de tudo, sempre a fim
A fim de tudo, mas sem coragem de lutar
Talvez medo
Medo de falar
Medo de ouvir
Medo de agir
Medo de tentar e não conseguir
Medo de viver
Talvez de morrer
De morrer falando
Morrer ouvindo
Morrer agindo
Morrer tentando
Tem dias que sou assim
Assim sem ninguém me entender
Somente por que
Não falei
Não ouvi
Não agi
Não tentei
Apenas porque não fiz nada
Tem dias que sou assim
Tem dias que eu sou a fim.

Aldemir Alves de Oliveira

Despoesia

Eu não sei o que escrever
Então junto umas palavras
Sem as rimas tão rimadas
Sem a métrica medida
Nem sentido aparente
Ou nada coerente
Apenas vontade de viajar por essas linhas
Ir até o fim da folha
Flutuando em uma bolha
De amor e solidão
Vasculhando meu coração
À procura de algo lindo
Que possa ir evoluindo
O meu dom de escrever
Dom esse à que me apego
Como a bengala de um cego
Vem do alto esse poder
Todo dia agradeço
E quem sabe um dia cresço
Pra saber sempre o que dizer.

André Guilherme

Olhar de Neblina

Olhar insidioso
Olhar desejado
Olhar pecaminoso
Olhar de neblina
Olhar que cala
Olhar que não fala...
Na embriaguez dos olhares
O meu mundo nublado
Fica todo ensolarado.

Arlã Rocha

Violeta

Seu perfume está escondido.
Apenas aqueles, poucos, de sorte,
podem verdadeiramente se encantar; e esperar
que o coração suporte

A instantânea ausência de gravidade,
quando a onda da doçura chegar;
a intensa sensação de perplexidade,
quando com um sorriso ela convidar:

a um canto suave na madrugada,
a um sol maior na barricada,
a uma companhia na encruzilhada.

Feliz, por ter tal privilégio,
conto para que nunca chegue a hora
dessa primavera ter que ir embora.

Beatriz Moura

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Também disse a você que era preciso escrever sem correção, não necessariamente depressa, a toda velocidade, não, mas de acordo consigo mesmo e com o momento que se atravessa, naquele momento, jogar a escrita para fora, maltratá-la quase, sim, maltratá-la, não retirar nada de sua massa inútil, nada, deixá-la inteira com o resto, não moderar nada, nem rapidez nem lentidão, deixar tudo no estado da aparição.

Marguerite Duras, Emily L

domingo, 2 de agosto de 2015

Walden. Solidão. Pág. 131.

Nunca me senti solitário, ou sequer oprimido por um sentimento de solidão, exceto uma única vez, e foi poucas semanas depois de ter vindo para a amata, quando, durante uma hora, fiquei em dúvida de a proximidade humana não seria essencial para uma vida serena e saudável. Estar sozinho era um pouco desagradável. Mas ao mesmo tempo eu tinha consciência de que uma leve insanidade em meu estado de espirito, e eu parecia prever minha recuperação. No meio de uma chuva mansa, tomado por esses pensamentos, de súbito senti uma companhia tão doce e benéfica na Natureza, no próprio tamborilar das gotas da chuva, em cada som e cada imagem ao redor de minha casa, uma amistosidade infinda e inexplicável, tudo ao mesmo tempo, como uma atmosfera me sustentando, que as imaginadas vantagens da proximidade humana se tornaram insignificantes, e desde então nunca mais pensei nelas.

H. D. Thoreau

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Os cães românticos

Naquele tempo eu tinha 20 anos
e estava louco.
Tinha perdido um país
mas tinha ganho um sonho.
Sim, tinha ganho esse sonho
o resto não interessava.
Nem trabalhar, nem rezar,
nem estudar de madrugada
junto aos cães românticos.
E o sonho vivia no vazio do meu espírito.
Uma casa de madeira,
entre penumbras,
num dos pulmões dos trópicos.
Às vezes voltava-me dentro de mim
e visitava o sonho: uma estátua eternizada
em pensamentos líquidos,
um verme branco retorcendo-se
no amor.
Um amor desbocado.
Um sonho dentro de outro sonho.
E o pesadelo dizia-me: hás de crescer.
Deixarás para trás as imagens da dor e do labirinto
e esquecerás.
Mas naquele tempo crescer teria sido um crime.
Estou aqui, disse, com os cães românticos
e aqui vou ficar.

Roberto Bolaño
Vemos que somos violentos, preconceituosos e egoístas.
Somos tudo isso porque uma vida condicionada, com base em falsos pensamentos, levou-nos
a esse estado. Os seres humanos são essencialmente bons, gentis e compadecidos,
mas é preciso um grande esforço de escavação para extrair essa jóia das entranhas de
nosso ser.

Mundo Grande

Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.


Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos

Carlos Drummond de Andrade  

terça-feira, 14 de julho de 2015

Passeio

esta é uma cidade
inabitada
em suas ruas, pela
madrugada,
todo passeio é possível:
saltar Parque Lage adentro
ou caminhar
à sombra dos
próprios pensamentos
no muro lá fora
um mendigo rabiscou
mandalas:
é possível encontrar
as mesmas em quase
toda cidade
construindo uma geografia
outra, íntima
uma aventura talvez
para o olhar
assim também
seu corpo para
mim:
o que se abre,
o que se reflete
em sorriso
nenhum crime, nenhum castigo.

Sergio Cohn

terça-feira, 7 de julho de 2015

Pílulas

Quem dera se coragem
fosse vendida
em pílulas
na farmácia da esquina.

Viajante Noturno

Ao redor do prédio verde

Erguem-se as mais belas esculturas

Versos
Brotam como raras pinturas

Não há, nas cercanias, nenhum sorriso
Que possa enfeitar o quadro

Mesmo assim, meu dedo modela no ar
O contorno dos teus lábios
João Luis Calliari

Coisas Erradas

pneu furado
buraco na estrada
feriado chuvoso
fruta estragada
nome esquecido
resposta atrasada

coração partido

por perto
uma gargalhada

há coisas muito certas
outras
muito erradas

mas o certo
é que ambas
passado um tempo

não são mais nada.

Tião Martins
Se o vento nos trazer toda a sua fúria, e as violentas águas subirem para molhar nossos pés descalços e os lobos uivarem o mais alto possível nos nossos ouvidos e as estrelas esfregarem na nossa cara o quanto a existência humana é serena e insignificante comparada ao poder e plenitude que a natureza possui perceberemos não negativamente ou assustadoramente que estamos na natureza, mas sim, que a natureza está em nós.

quinta-feira, 2 de julho de 2015


E percebo que não importa onde eu esteja, seja em um quartinho repleto de idéias ou nesse universo infinito de estrelas e montanhas, tudo está na minha mente. Não há necessidade de solidão. Por isso, ame a vida como ela é e não forme idéias preconcebidas de espécie alguma em sua mente.

Jack Kerouac

Grutas

À paisagem gravitam
Nas grutas do invisível
Pequenas ou grandes coisas
Que não se explicam

E aparecem
E passam
Evaporam
E chovem no meio do mar

A gente nunca sabe a hora
E é sempre a hora exata

De se olhar.

Marcelo Montenegro